METÁFORA PICTÓRICA E MULTIMODAL

 Olá, caro leitor!

    Seja bem-vindo à nossa oitava postagem, na qual exploraremos o universo das metáforas — não apenas como figuras de linguagem, mas como formas fundamentais de pensar e comunicar. Nosso ponto de partida será o capítulo Metáfora pictórica e multimodal, escrito por Charles Forceville e publicado no livro Manual de linguagem em contextos multimodais, organizado por Klug e Stöckl (2016). Forceville, pesquisador da Universidade de Amsterdã, é referência nos estudos sobre metáforas visuais e multimodais, e propõe que a metáfora vai muito além das palavras: ela pode estar em imagens, gestos, sons e na combinação entre diferentes formas de expressão. Ao longo desta postagem, discutiremos conceitos essenciais e exemplos marcantes que revelam como a metáfora estrutura nossas experiências e percepções cotidianas.


Contexto da Pesquisa – Desenvolvimento do Campo

    Nas últimas décadas, a metáfora deixou de ser considerada apenas uma figura de linguagem decorativa para ocupar um lugar central nos estudos sobre cognição. A virada conceitual começou com a obra seminal Metáforas pelas quais vivemos, de Lakoff e Johnson (1980), onde os autores argumentam que as metáforas estruturam nosso modo de pensar e compreender o mundo. Eles propuseram que entendemos conceitos abstratos por meio de experiências concretas e corporificadas — por exemplo, a ideia de que “tempo é dinheiro” ou que “emoções são forças”. Essa perspectiva ficou conhecida como Teoria da Metáfora Conceitual (CMT, na sigla em inglês) e mostrou que nosso pensamento é, em grande parte, metafórico, influenciado por nossas percepções sensoriais e interações físicas com o ambiente.

    A partir dessa mudança de paradigma, os pesquisadores passaram a buscar evidências de metáforas não apenas na linguagem verbal, mas também em outras formas de expressão, como gestos, imagens e sons. Essa expansão foi considerada uma consequência lógica da CMT: se a metáfora é um fenômeno cognitivo e não meramente linguístico, então ela deve se manifestar em diferentes modalidades semióticas. Dois caminhos principais emergiram nesse contexto: o estudo da metáfora nos gestos que acompanham a fala (por exemplo, movimentos de mãos que indicam “pesar opções” ou “avançar no tempo”) e o estudo das metáforas visuais em mídia impressa, como publicidade e charges políticas. Charles Forceville foi pioneiro nessa segunda vertente, analisando como imagens podem comunicar relações metafóricas mesmo sem o suporte de linguagem verbal explícita.

    Com o tempo, ficou claro que muitas metáforas não operam apenas em uma modalidade isolada, mas são expressas simultaneamente por múltiplos modos — por exemplo, texto e imagem, som e movimento, ou linguagem e gesto. Isso levou à distinção entre metáforas monomodais (representadas predominantemente por um único modo) e metáforas multimodais (em que o alvo e a fonte são comunicados por modos diferentes). A metáfora multimodal tornou-se um campo de estudo em crescimento, especialmente com o desenvolvimento das mídias digitais, que combinam diversos modos semióticos. Neste capítulo, Forceville concentra-se particularmente nas metáforas que envolvem recursos visuais em combinação com a linguagem escrita, buscando compreender como essas interações constroem significado de forma integrada e dinâmica.

Descrição dos Métodos

    Neste item, Charles Forceville descreve os princípios fundamentais para identificar e interpretar metáforas, especialmente em contextos visuais e multimodais. Ele parte da noção tradicional de que uma metáfora envolve dois domínios: o alvo (tema do qual se fala) e a fonte (elemento a partir do qual se projeta significado). A metáfora estabelece uma relação de identidade entre coisas de categorias diferentes, permitindo que propriedades da fonte sejam mapeadas para o alvo. Esse mapeamento pode envolver conotações, emoções, atitudes e crenças. Em discursos verbais, há pistas linguísticas que facilitam essa relação (como a cópula "é" – por exemplo, “a vida é uma estrada”), mas no caso de metáforas não verbais ou multimodais, essas pistas precisam ser inferidas a partir do contexto, do conhecimento prévio e da análise da cena visual.

    Forceville alerta para três desafios principais: (1) a metáfora precisa ser interpretada ativamente, e nem todos os observadores o farão da mesma forma; (2) às vezes, apenas a fonte está presente no texto, exigindo que o alvo seja reconstruído com base em pistas externas; (3) o modo como o analista verbaliza a metáfora (como A É B, por exemplo) pode influenciar a sua interpretação. Além disso, o autor propõe que metáforas devem ser analisadas como processos dinâmicos de mapeamento, não apenas como equivalências fixas. Ele também discute a necessidade de definir claramente o que se entende por "modo" (visual, verbal, sonoro, etc.), já que a metáfora multimodal depende da interação entre diferentes formas de expressão. No fim da seção, Forceville sugere que identificar metáforas visuais e multimodais exige novas metodologias adaptadas às características específicas dessas modalidades.

Tipos de Metáfora

1 - Metáfora Contextual

    Neste tipo de metáfora visual, o objeto (alvo) é colocado em um contexto visual sugestivo, que o faz parecer outra coisa (fonte). Por exemplo, uma bolsa de grife é exibida sobre um pedestal em um museu, convidando o observador a interpretá-la como uma escultura — sugerindo que a bolsa tem valor artístico. Essa construção depende do reconhecimento do contexto espacial e cultural, o que mostra como o conhecimento prévio é essencial para que a metáfora funcione.

Fonte: https://www.metropoles.com/colunas/ilca-maria-estevao/exposicao-em-londres

2 - Metáfora Híbrida

    Aqui, o alvo e a fonte são fisicamente fundidos em uma única imagem, criando uma nova gestalt. Um exemplo é uma caricatura de George Bush representado com corpo e postura de um bebê. Essa fusão sugere, de forma visual e crítica, que o comportamento do político é infantil. Como a metáfora surge da combinação visual de elementos, ela tende a ser mais impactante e explícita.

Fonte: https://www.redbubble.com/i/sticker/George-W-Bush-cute-style-by-ComicsFactory/154047946.EJUG5

3 - Símile

    Diferente da metáfora direta, o símile compara visualmente dois elementos que são mantidos separados, mas colocados lado a lado para sugerir semelhança. Um exemplo mostra uma máquina de café Nespresso ao lado de um horizonte de arranha-céus, sugerindo que a máquina é “como” um prédio moderno. A comparação destaca atributos como inovação e sofisticação, explorando a semelhança visual para reforçar a associação.

Fonte: https://www.nespresso.com/pro/br/pt/assinatura-empresas







Fonte: https://blog.br.tkelevator.com/mobilidade-e-conforto-tecnologia-proporciona-sobe-e-desce-suave-em-predios-altos/

4 - Metáfora Verbo-pictórica

    Esse subtipo mistura imagem e texto, sendo portanto inequivocamente multimodal. Em um exemplo, a imagem de um boxeador é acompanhada da palavra “xadrez”, sugerindo a metáfora BOXE É XADREZ, enquanto em outro caso ocorre o inverso. O texto e a imagem se complementam para construir o mapeamento metafórico, em que uma atividade física adquire atributos intelectuais e vice-versa. Essa interação entre modos é essencial para o funcionamento da metáfora.

Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=soUSuD-qX9g

5 - Metáforas Integradas / Metáforas de Produto

    Esse tipo ocorre em objetos tridimensionais reais, cujo design evoca outro objeto com o qual compartilha características formais ou funcionais. Um exemplo citado é uma luminária chamada “lâmpada irmã”, cujo formato remete à figura de uma irmã. A metáfora aqui é percebida através do uso e da forma do produto, sendo potencializada por nomes e associações culturais. Diferente das híbridas, essas metáforas existem fisicamente e podem ser comercializadas.

Fonte: https://jornaldoisirmaos.com.br/noticia/12112019-rge-distribui-lampadas-de-led-a-125-familias-de-baixa-renda

Domínio de origem intradiegético ou extradiegético

    Este item trata da distinção entre fontes metafóricas que fazem parte da narrativa apresentada (intradiegéticas) e aquelas que estão fora dela (extradiegéticas). Quando a fonte é intradiegética, ela aparece de forma natural ou verossímil no cenário — por exemplo, em um filme, a fonte está integrada à cena, como um pôster ou objeto visível. Já uma fonte extradiegética aparece de modo inesperado ou artificial, rompendo com a continuidade narrativa. Essa presença "estranha" força o observador a construir uma metáfora, pois não há explicação lógica para sua inserção exceto a função metafórica.

    Forceville argumenta que fontes extradiegéticas tendem a ser mais didáticas, pois não têm outra razão de estar ali a não ser provocar uma reflexão metafórica. Já fontes intradiegéticas criam metáforas de maneira mais sutil, por meio da integração contextual. A escolha entre essas duas estratégias depende do objetivo comunicativo do autor: ensinar algo diretamente ou criar uma conexão mais natural e imersiva. Essa distinção, embora inicialmente visual e narrativa, também se aplica a outras modalidades, inclusive em discursos multimodais e publicitários.

Gênero

    A influência do gênero discursivo é central na interpretação de metáforas multimodais. Forceville sustenta que, ao nos depararmos com uma representação (um anúncio, uma charge, um filme), a primeira coisa que fazemos — ainda que inconscientemente — é atribuí-la a um gênero. Isso ativa um conjunto de expectativas que guia nossa leitura e interpretação. Por exemplo, em uma propaganda, espera-se que as metáforas transmitam conotações positivas sobre o produto. Já em uma charge política, o mapeamento metafórico tenderá a ser negativo e crítico.

    Além disso, o gênero afeta o grau de estruturação da metáfora. Em livros didáticos, por exemplo, espera-se que a metáfora ajude na compreensão e aprendizagem, favorecendo uma estrutura interna mais clara e instrutiva. Em contrapartida, em filmes, a metáfora pode ser mais livre e contribuir para a caracterização de personagens ou atmosferas. Assim, entender o gênero não é apenas um detalhe contextual — é um fator determinante na construção e interpretação de metáforas em discursos multimodais.

Metáforas criativas versus estruturais

    Neste item, Forceville diferencia as metáforas criativas, que são originais e específicas ao contexto, das estruturais, que são recorrentes e refletem formas sistemáticas de entender conceitos abstratos (como “tempo é espaço” ou “emoções são forças”). As criativas chamam a atenção pela novidade e muitas vezes estão associadas à arte, publicidade e humor. Já as estruturais fundamentam nossos modelos cognitivos e podem aparecer tanto na linguagem quanto em gestos, imagens e filmes.

    O autor enfatiza que essa distinção não é absoluta, mas sim um continuum: metáforas estruturais podem ser empregadas de maneira criativa em determinados contextos, enquanto metáforas criativas muitas vezes se baseiam em estruturas já conhecidas. Além disso, a criatividade também pode surgir na forma como diferentes modos são combinados — ou seja, no aspecto multimodal da metáfora. Com isso, Forceville amplia a noção de criatividade metafórica para além do conteúdo, incluindo a forma e a modalidade.

Metáfora monomodal ou multimodal?

    Aqui, Forceville retoma a distinção entre metáforas monomodais, em que alvo e fonte estão no mesmo modo (como apenas imagens), e multimodais, nas quais cada elemento aparece em modos diferentes (por exemplo, imagem e texto). Ele reconhece que essa distinção, embora útil, nem sempre é simples na prática. Muitas vezes, os elementos metafóricos podem ser parcialmente duplicados em mais de um modo, ou sua identificação pode variar conforme o conhecimento prévio do observador.

    O autor sugere que se pense a distinção como um continuum, em vez de uma divisão rígida. Um mesmo exemplo pode ser interpretado como monomodal por uma pessoa e multimodal por outra, dependendo do modo de acesso à informação. Além disso, mesmo quando a identificação de alvo e fonte é monomodal, o mapeamento de características pode depender de outros modos. Isso mostra que o fenômeno da metáfora, especialmente em ambientes multimídia, é mais complexo do que a teoria inicialmente previa.

Metáfora e outros tropos

    Forceville alerta para o risco de tratar toda figura de linguagem como metáfora e ressalta a importância de distinguir a metáfora de outros tropos, como símile, metonímia e sinédoque. Embora a metáfora seja a figura mais estudada na Teoria da Metáfora Conceitual (CMT), outras figuras também têm manifestações não verbais e multimodais igualmente relevantes. Estudos recentes mostraram, por exemplo, o papel expressivo da metonímia visual em campanhas publicitárias e charges políticas.

    Além disso, alguns tropos não verbais são difíceis de categorizar com base nas distinções tradicionais da retórica verbal. O autor menciona pesquisas sobre trocadilhos visuais, oxímoros pictóricos e agrupamentos imagéticos como possíveis caminhos para expandir o repertório analítico. Ele propõe que, para uma análise completa do discurso multimodal, é necessário estudar não só metáforas, mas um leque mais amplo de tropos, respeitando suas especificidades semióticas.

Avaliação crítica do(s) método(s)

   Forceville reconhece que o estudo das metáforas visuais e multimodais ainda está em desenvolvimento e que é cedo para estabelecer métodos definitivos. Um dos principais desafios metodológicos é identificar quais elementos em um discurso multimodal funcionam como pistas para a construção de uma metáfora. Como nas metáforas verbais, os sinais nem sempre são explícitos, e no caso das metáforas não verbais, a dificuldade aumenta: o reconhecimento depende muitas vezes da percepção subjetiva, do conhecimento prévio e até do contexto cultural do observador. Além disso, há uma carência de critérios claros para distinguir metáforas de outros tropos visuais e multimodais, como metonímias e trocadilhos. Isso compromete a precisão das análises e sugere a necessidade de maior refinamento teórico.

    Outro problema importante é que diferentes pessoas podem interpretar a mesma imagem de maneiras distintas: o que é uma metáfora para um observador pode não ser para outro. A noção de “incongruência visual” — quando elementos contrastantes aparecem juntos em uma imagem — costuma servir como sinal para a interpretação metafórica, mas Forceville alerta que nem toda metáfora visual depende dessa incongruência, e nem toda incongruência resulta em metáfora. Ele também critica estudos que analisam metáforas visuais sem distinguir claramente entre metáforas pictóricas e metáforas multimodais, o que compromete a precisão das conclusões. Para ele, qualquer método de análise precisa levar em conta não só os elementos internos do texto, mas também aspectos pragmáticos como o gênero e o contexto sociocultural.

Conclusões

    Forceville encerra o capítulo enfatizando que a pesquisa sobre metáforas não verbais e multimodais está apenas começando, mas já revela o potencial de ampliar nossa compreensão sobre como construímos significados. Ele destaca que, para que a área avance, é fundamental definir com mais rigor o que se entende por "modo", desenvolver modelos analíticos supramodais (como a Teoria da Relevância), integrar diferentes disciplinas (como linguística, semiótica, design, cinema e música), e ampliar o estudo para outros tropos além da metáfora. Também sugere que as metáforas devem ser analisadas em relação aos gêneros discursivos em que aparecem, e que hipóteses mais precisas devem ser testadas por meio de pesquisas empíricas. O autor vê, portanto, um campo promissor e interdisciplinar, que pode enriquecer tanto as humanidades quanto as ciências sociais.


REFERÊNCIAS

BLACK, Max. More about metaphor. In: ORTONY, Andrew (Ed.). Metaphor and thought. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 1993. p. 19–43.

FORCEVILLE, Charles. Metáfora pictórica e multimodal. In: KLUG, Nina-Maria; STÖCKL, Hartmut (Org.). Manual de linguagem em contextos multimodais. Berlim: Mouton de Gruyter, 2016. p. 1-21. 

LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. Tradução: Izabel C. S. da Costa. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2002.
(Original: LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metaphors we live by. Chicago: University of Chicago Press, 1980.)

LAKOFF, George; TURNER, Mark. More than cool reason: a field guide to poetic metaphor. Chicago: University of Chicago Press, 1989.

GIBBS, Raymond W. Jr. The poetics of mind: figurative thought, language, and understanding. Cambridge: Cambridge University Press, 1994.

SPERBER, Dan; WILSON, Deirdre. Relevance: communication and cognition. 2. ed. Oxford: Blackwell, 1995.

KÖVECSES, Zoltán. Metaphor in culture: universality and variation. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

JOHNSON, Mark. The body in the mind: the bodily basis of meaning, imagination, and reason. Chicago: University of Chicago Press, 1987.

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