INTERTEXTUALIDADE SEGUNDO BAZERMAN
Olá, caros leitores!
Em nossa nona postagem, seguimos aprofundando nosso diálogo com as ideias de Charles Bazerman, um dos maiores nomes dos estudos sobre escrita, gêneros textuais e agência. Hoje, vamos explorar com mais cuidado o Capítulo 7 do livro “Gênero, agência e escrita” (volume 2), intitulado “Intertextualidade: como os textos se apoiam em outros textos”.
A intertextualidade, como veremos, não é apenas uma técnica estilística ou um recurso literário, mas um fenômeno constitutivo da linguagem e da construção de sentido. Todos os textos, em maior ou menor grau, dialogam com outros — citando, parafraseando, recontextualizando ou até mesmo silenciando vozes anteriores. Neste capítulo, Bazerman nos oferece uma análise rica e profunda das formas e funções que esse diálogo textual pode assumir, especialmente em contextos educacionais e acadêmicos.
O que é intertextualidade
Intertextualidade é a maneira como um texto se relaciona com outros textos, conscientemente ou não. Bazerman destaca que quase todas as palavras e frases que usamos já foram ouvidas ou lidas antes, e nossa habilidade como escritores surge da forma como reorganizamos essas palavras em novos contextos e situações. Assim, os textos são sempre construídos dentro de um “oceano linguístico” compartilhado que circula socialmente.
Essa rede textual compartilhada implica que, ao escrever ou ler, somos constantemente atravessados por outras vozes. Às vezes, os escritores querem indicar claramente de onde vêm as palavras, outras vezes, não. Como leitores, podemos perceber referências explícitas ou apenas sentir influências mais sutis e inconscientes. O autor afirma que mesmo os textos que parecem “originais” estão embebidos em referências invisíveis.
Compreender a intertextualidade é, portanto, compreender os modos como os textos dialogam entre si, formando um conjunto de significados que se estendem no tempo e no espaço. Analisar esse fenômeno pode revelar como o sentido de um texto é constituído em relação a outros textos e contextos, e também como os autores posicionam-se dentro dessa rede de discursos.
Tipos e níveis de intertextualidade
Bazerman propõe uma classificação dos níveis de intertextualidade, desde menções explícitas (como citações diretas ou indiretas) até usos mais sutis de linguagem associada a determinados grupos ou discursos. Ele menciona exemplos como o uso de frases feitas ou metáforas retiradas de outros domínios, como o esporte, aplicadas em contextos políticos – o que modifica seu significado original.
O texto também discute diferentes tipos de intertextualidade conforme o alcance e a organização dos textos. Por exemplo, a intertextualidade intra-arquivo ocorre quando documentos dentro de um mesmo conjunto (como uma empresa ou uma sala de aula) dialogam entre si. Já a intertextualidade disciplinar e interdisciplinar indicam as fronteiras dentro das quais os textos acadêmicos se referenciam, podendo ser mais ou menos restritas.
Além disso, o autor introduz o conceito de recontextualização, ou seja, o deslocamento de palavras ou ideias de um contexto para outro. Quando uma expressão muda de cenário – como de um hospital para uma seguradora ou para uma discussão ética – ela ganha novos sentidos. Isso mostra que as palavras não são neutras: elas carregam os valores do ambiente em que são usadas.
Conceitos básicos e níveis de intertextualidade
Bazerman propõe diferentes níveis de intertextualidade, conforme o grau de visibilidade e intenção do autor:
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Citação direta ou indireta de textos anteriores como fontes autorizadas:
“Como afirmou Paulo Freire (1996), ‘ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção.’”
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Referência a dramas sociais e controvérsias passadas:
"Assim como na crise do mensalão, os recentes escândalos políticos levantam novamente o debate sobre ética na administração pública."
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Resumos e paráfrases de vozes alheias:
Segundo Vygotsky, o desenvolvimento da linguagem está intimamente ligado às interações sociais na infância.
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Avaliações ou comentários sobre falas e textos de outros:
Apesar de convincente em muitos pontos, o argumento de Bauman sobre a “modernidade líquida” pode ser problemático ao generalizar padrões ocidentais para outras culturas.
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Uso de estilos reconhecíveis associados a determinados grupos:
“A rapaziada do corre sabe: aqui é foco, força e fé.”
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Emprego de vocabulário típico de certos gêneros ou instituições:
“Diante da insuficiência respiratória aguda, optou-se por intubação orotraqueal e início de ventilação mecânica.”
Cada uma dessas formas de intertextualidade serve para posicionar o autor em relação ao conteúdo e às vozes evocadas. Isso mostra que intertextualidade não é apenas o uso de referências, mas uma estratégia de posicionamento discursivo.
Bazerman ainda comenta que, quanto mais explícita for a intertextualidade, mais fácil será identificá-la. No entanto, formas implícitas também são importantes e exigem atenção para captar os estilos, os termos e os tons que evocam certos discursos.
Distância e alcance intertextual
Outro conceito central é o de alcance intertextual, que se refere a quão longe um texto vai em suas conexões com outros. Isso pode ocorrer dentro de um mesmo grupo institucional (intra-arquivo), entre disciplinas (interdisciplinar), entre setores (intrainstitucional), ou entre mídias diferentes (intermidialidade).
Bazerman menciona, por exemplo, como um memorando de uma empresa pode se referir a outros memorandos anteriores, configurando uma intertextualidade intra-arquivo. Em contraste, uma reportagem pode mobilizar vozes da ciência, da política e da opinião pública, caracterizando uma intertextualidade interdisciplinar e intermidial.
Esses movimentos entre contextos diferentes são denominados recontextualizações — e é aqui que o sentido dos textos pode mudar radicalmente, como no caso de termos médicos usados em contextos políticos ou financeiros. Isso mostra como a intertextualidade está ligada à circulação social e aos usos da linguagem.
Recontextualização e comentário intertextual
A recontextualização ocorre quando um texto ou parte dele é deslocado de um contexto para outro, adquirindo novos sentidos. Essa prática pode ser neutra, mas também pode ter implicações críticas, avaliativas ou irônicas, dependendo de como o novo autor manipula o material original.
Por exemplo, quando um opositor a uma política pública usa expressões como “a assim chamada lei”, está recontextualizando o termo para criticá-lo. Da mesma forma, adolescentes podem zombar de professores repetindo frases com tom sarcástico. Tudo isso é chamado por Bazerman de comentário intertextual.
Esse tipo de uso mostra que a intertextualidade não é passiva, mas envolve intenção, agência e posicionamento. O autor destaca que os escritores escolhem como, quando e por que incorporar vozes alheias — e que isso revela muito sobre sua postura e seus objetivos discursivos.
Intertextualidade esperada em certos gêneros
Bazerman explica que certos gêneros textuais possuem modelos típicos de intertextualidade. Um exemplo são os artigos científicos, que citam estudos anteriores para justificar uma nova pesquisa. As introduções científicas geralmente seguem o padrão: mostrar o que já foi feito, identificar uma lacuna e propor uma nova abordagem.
Outro exemplo são reportagens jornalísticas, que frequentemente incluem falas de representantes de diferentes lados de uma polêmica. A intertextualidade, nesses casos, é quase uma exigência do gênero, pois garante equilíbrio, credibilidade e contextualização.
Reconhecer essas práticas ajuda na análise textual, permitindo entender como certos discursos se estruturam e quais expectativas orientam sua produção e recepção. Também mostra como diferentes campos do saber desenvolvem normas próprias de citação e alusão.
Metodologia da análise intertextual
Para analisar intertextualidade, Bazerman recomenda começar com uma pergunta clara: o que queremos saber com essa análise? Em seguida, selecionar um corpus adequado — nem muito amplo a ponto de dificultar a análise, nem muito pequeno a ponto de ser irrelevante.
O passo seguinte é identificar os elementos intertextuais presentes no texto, classificando-os conforme os tipos já descritos (citação, comentário, estilo, etc.). O autor sugere organizar essas informações em tabelas para facilitar a visualização e interpretação.
Além das referências explícitas, é importante estar atento às intertextualidades implícitas: palavras que evocam um domínio específico, frases feitas ou vocabulário típico de um grupo. Com isso, é possível interpretar não apenas o conteúdo, mas o posicionamento discursivo do autor frente aos textos que ele mobiliza.
Concluímos, portanto, que a intertextualidade, conforme apresentada por Charles Bazerman, é um elemento fundamental para compreender como os textos se constroem em diálogo constante com outros discursos, contextos e práticas sociais. Ao revelar que todo ato de escrita é também um ato de posicionamento frente a vozes anteriores, Bazerman nos convida a olhar para a produção textual como uma atividade profundamente social, histórica e estratégica. Compreender esses mecanismos é essencial para leitores e escritores que desejam atuar de forma mais consciente e crítica nos diversos domínios da comunicação escrita.
ANÁLISE DA INTERTEXTUALIDADE EM VÍDEOS
Lançamento da expedição Apollo 11 e comercial de lançamento de veículo da Audi (2016)
Visual: A Audi recria elementos visuais icônicos da missão Apollo, como a paisagem lunar, a textura da superfície, a gravidade reduzida, e o astronauta com traje espacial semelhante ao usado por Neil Armstrong.
Verbal: A fala icônica “That’s one small step for a man…” pode ser usada, ou aludida de forma textual ou sonora, mesmo que modificada ou sugerida indiretamente (por narração, por exemplo).
A Audi também faz citação indireta ao reinterpretar, com linguagem atual, o espírito de conquista e superação da missão lunar. A marca associa sua tecnologia automotiva com a ideia de exploração e avanço tecnológico, ou seja, substitui a NASA pela própria Audi como símbolo de inovação. Há uma reescritura do cenário: em vez de um módulo lunar, temos um carro da Audi — ele é apresentado como um novo “veículo de conquista”.
Há traços de paródia sutil, no sentido de recontextualizar a seriedade e solenidade da missão Apollo em um ambiente publicitário. A Audi, ao colocar um carro na Lua, brinca com a ideia de que sua engenharia é tão avançada que poderia funcionar até fora da Terra. Não há escárnio, mas há uma ressignificação lúdica da conquista espacial. A paródia aqui não ridiculariza, mas transforma a solenidade científica da missão em uma metáfora de performance automotiva.
Alusão (Menção Implícita)
A alusão aparece quando o vídeo da Audi sugere o contexto da ida à Lua sem necessariamente mencioná-lo diretamente:
O cenário lunar e a estética espacial evocam imediatamente a memória coletiva do pouso de 1969.
A Audi não precisa nomear Armstrong ou a Apollo 11 — os elementos simbólicos já bastam para criar essa ponte intertextual com o passado. A alusão é poderosa porque usa o conhecimento prévio do público como base para construir o impacto narrativo.
Homenagem (ou intertextualidade cultural)
O vídeo da Audi também pode ser lido como uma homenagem ao espírito humano de exploração. Ele se insere na tradição cultural de narrativas sobre avanço, progresso, inovação e ciência — valores muito fortes na cultura ocidental moderna, associados à corrida espacial. Essa homenagem gera uma identificação emocional entre o espectador e o produto, amparada na memória cultural coletiva.
Intericonicidade (intertextualidade de imagens icônicas)
Este tipo ocorre quando imagens de forte valor simbólico são reutilizadas ou recriadas:
A pose do astronauta, a bandeira fincada no solo, a visão da Terra ao fundo — todos são elementos imagéticos “ícones” do imaginário popular. Ao reproduzir esses ícones no vídeo, a Audi cria um elo visual direto com o passado, reforçando a sensação de autenticidade e grandiosidade.
Filme: O grande ditador / Abertura da novela O dono do mundo
Fonte: Filme o grande ditador
A novela não replica literalmente o discurso, mas evoca o clima e os elementos visuais do filme de Chaplin. Os closes intensos em rostos masculinos remetem ao momento mais simbólico de O Grande Ditador, em que a mensagem de resistência e sensibilidade é transmitida apenas com a expressão facial. Os rostos bem iluminados contra fundos escuros, o uso de sombras, o ritmo lento e os cortes bruscos constroem um vocabulário visual semelhante ao do cinema clássico, especialmente ao estilo chapliniano do final do filme.
Homenagem
A abertura da novela pode ser entendida como uma homenagem simbólica ao discurso do filme, evocando temas como poder, ego, moralidade e responsabilidade. A novela trata de questões de ética médica e poder masculino, alinhando-se ao discurso contra a desumanização no filme.
Alusão
Há alusão ao controle e dominação: imagens como as de satélites, grades e efeitos visuais de fragmentação ou duplicação remetem ao tema de vigilância e opressão presentes no filme, especialmente no trecho em que Chaplin denuncia os perigos do autoritarismo.
REFERÊNCIAS
BAZERMAN, Charles. Intertextualidade: como os textos se apoiam em outros textos. In: DIONISIO, Angela Paiva; HOFFNAGEL, Judith Chambliss (org.). Gênero, Agência e Escrita. 2. ed. Campina Grande: EDUFCG, 2021. v. 2, p. 135-161.
Parabéns! gosto da sua escrita
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